Fulgêncio
era um homem bom e querido pelos amigos. Sempre exaltado pelas ações
beneficentes junto às instituições de caridade e pela atividade
constante na igreja, não havia que falar dele. Para qualquer um que se
perguntasse na rua da pequena cidade, aquele era um homem quase santo.
O
lado avesso de Fulgêncio, no entanto, se manifestava quando ele passava
pela porta de casa. Então se tornava um marido frio e agressivo, um pai
cruel, um patrão detestável. Obviamente que ninguém ousava mencionar
isso por aí, pois o homem era bom e querido, mas também temido por conta
do passado que carregava. Fora pistoleiro de vários coronéis, trazia
mortes nas costas e escapara de três tocaias. Antigamente diziam até que
ele tinha parte com o tinhoso, que Deus nos livre, amém. Mas isso foi
antigamente porque hoje, como disse, a fama de benevolência sua já era o
suficiente para apagar os erros do passado.
Só
não pensavam assim os que conviviam com ele dentro da mesma casa. A
esposa se chama Josefa, mulher educada na capital, de família rica, que
se chafurdara neste fim de mundo com o homem que a raptara. Perdeu tudo,
deserdada pelo pai rancoroso, e ainda teve de aturar surras e ameaças
no correr dos anos. Malvina era a filha, uma moça bonita, como fora sua
mãe, mas que não atraía pretendentes porque os rapazes se desencorajavam
de ir até a casa do homem comprovadamente bom, mas ciumento. Melhor não
bulir com essa gente, diziam os pais dos moços.
Certo
dia Josefa aproveitou a presença do padre para tocar no assunto da
filha. Disse que a coitada precisava sair para bailes, conhecer rapazes,
fazer amizades com outras moças. O velho sacerdote não quis se meter,
tinha no bolso uma gorda doação, e se limitou a abençoar aquele lar
harmônico. Mas foi ele sair que o pau comeu. Fulgêncio levou a esposa
até o quarto, despiu-a e lhe aplicou uma custosa surra de cinto. Era
para aprender a não tratar de assuntos íntimos na presença de estranhos.
Noutra ocasião, quando Malvina apresentou ao pai um colega de escola,
Fernando, ele pôs o moço para correr e foi a vez da filha levar um
corretivo à altura, para aprender a não correr atrás de homem.
― E tem mais, papai, hoje sua filhinha do coração vai perder a virgindade com esse moço que o senhor não aprovou.
Se pudesse se levantar Fulgêncio teria atacado Malvina, tamanha sua indignação ante tais palavras. Mas não podia mais reagir como antes. Agora o acaso é que tomava as rédeas do seu destino.
De fato, sob o manto das estrelas, Malvina se entregou demoradamente a Fernando. No quarto, sozinho, pois a esposa saíra, como fazia todas as noites, Fulgêncio morreu tranquilamente enquanto revia mentalmente a imagem da filha criança que ele empurrava no balanço e a esposa amorosa ao seu lado. Bons tempos aqueles!
Acadêmico Adriano Curado
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