Perto da minha casa há um sobrado
antigo, bicentenário talvez, e toda noite eu ouço um solo de violino que
vem de lá. O solista toca repertório variado. Às vezes está nos
clássicos, outras em músicas modernas, e não é raro ouvir alguma música
desconhecida, talvez de autoria sua.
À
hora do Angelus, no toque das ave-marias, é meu momento preferido para
me sentar no terreiro, abrir o livro do momento e ler descontraidamente e
sem compromisso. Às vezes devoro um capítulo inteiro, outras apenas uma
página, e não é raro que fique ali em silêncio na contemplação dos sons
do prenúncio da noite.
Fato
é que mal começa a escurecer e lá vem o violino misterioso me fazer
companhia. Minha casa é separada desse sobrado por um velho e baixo muro
de adobes, de modo que eu posso analisar sua estrutura com cuidado e
sem ser notado. O prédio é feito de vigas de aroeiras grossas, paredes
que parecem de taipa e telhas moldadas nas coxas de escravos. Todas
essas informações, obviamente, eu imagino, e não posso confirmá-las.
Esses concertos ao anoitecer duram não mais que vinte minutos ou umas três músicas no muito. Depois desce o silêncio sobre o sobrado e não ouço nenhum ruído daquelas bandas.
Esses concertos ao anoitecer duram não mais que vinte minutos ou umas três músicas no muito. Depois desce o silêncio sobre o sobrado e não ouço nenhum ruído daquelas bandas.
Intrincado
com essa história, resolvi pesquisar com os moradores mais antigos da
rua. Cidade do interior tem disso, todos sabem da vida geral. Mas minha
surpresa foi imensa quando me contaram que não mora ninguém ali. É isso
mesmo. Disseram que os últimos moradores foram uns mineiros que dali se
mudaram depois que a filha se matou por questões amorosas. Isso há meio
século.
Na
noite seguinte a essas histórias, Mário Quintana no colo e ruga
interrogativa na testa, foi eu ouvir a 9ª Sinfonia de Beethoven e subi
no alicerce de pedras do muro para tentar ver algo. E vi, de fato.
Entremeio às vidraças quebradas, vislumbrei, à
furta-cor, o vulto de braços ágeis e um violino. Não apareceu o corpo ou
a face, apenas esse detalhe. Quando terminou, eu aplaudi, e por isso as
mãos se puseram imóveis, paralisadas, estátua banhada pelo mármore da
lua. Durou alguns segundos esse estado e depois a imagem se apagou
diante dos meus olhos. Nessa noite o concerto foi mais curto, de apenas
um ária. E o que é pior, cessou por uma semana inteira.
Viajei
por conta de compromissos profissionais e fiquei quinze dias fora. É
que, além de advogado, sou escritor e historiador. Então fui à Torre do
Tombo, em Portugal, pesquisar alguns documentos sobre a história de
Goiás. Quando voltei, trabalhava na organização dos arquivos que
trouxera e lá do escritório comecei a ouvir um violino. A princípio
pensei se tratar de uma gravação, mas quando me lembrei da vizinha
(agora eu lhe atribuía sexo), saí em desabalada correria. Era o fim da
terceira música e logo tudo silenciou.
Historiador
é curioso por natureza. Então fui ao arquivo municipal pesquisar e
descobri que em 1965, naquele mesmo sobrado, Lúcia se jogara da
água-furtada e seu rosto se desfigurara nas pedras do terreiro. O motivo
era a proibição de se casar com um jovem pobre. Voltei para casa com
isso na mente. Será que não me mostrava o rosto por estar deformado?
Será que seu silêncio por tanto tempo é por não querer plateia ou
palmas? Não há respostas.
Deixei
de perturbar a vizinha. Não subi mais no mudo e nem espiei a intimidade
daquele sobrado. Como recompensa, meu início de noite continua embalado
por belíssimas melodias. Agora mesmo, enquanto escrevo esta história,
ouço a Ave-Maria de Schubert e vez por outra lanço um olhar de esguelha
para o rumo do sobrado. Creio que se firmou uma certa cumplicidade entre
mim e a violonista de belas mãos. Nem sei quanto tempo durará esse
coluio musical, mas enquanto isto me deleito com a precisa execução de
tão complexo instrumento.
Acadêmico Adriano Curado
http://www.adrianocurado.com/
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