A rua virou um rio

 Há horas, o céu era de um azul forte, bonito, permeado de nuvens alvas como uniforme de antigas normalistas. Alguém se lembra das normalistas? Aquelas moças que, após o ginasial, escolhiam fazer a chamada Escola Normal, que tinha aqui em Goiânia sua maior referência no Instituto de Educação.

Ah, no Rio de Janeiro também! Existe ainda um belo casarão, em arquitetura de estilo, na Rua Mariz e Barros, na Tijuca, que, até os anos 70, era referencial obrigatório na saudade carioca. Da infância, ficaram os versos de David Nasser (música de Benedito Lacerda) que Nelson Gonçalves imortalizou:

                   Vestida de azul e branco
                    trazendo um sorriso franco
                    num rostinho encantador
                    minha linda normalista
                    rapidamente conquista
                    meu coração sofredor”.
Mas não é de normalistas e de samba-canção que trato nestas linhas. Falo de céu azul e nuvens brancas que, em pouco, se vestiu de um pesado cinza, com tons mais escuros no quadrante sul. Em pouco, grossas gotas marcavam compasso de dobrado e rapidamente era choro em notas graves de cordas e arcos em orquestra. Corre-se a fechar janelas, proteger-se da água sob ação de ventos e rapidamente o ar se resfria. Não demora a ganhar, a chuva, seu ritmo de poema longo e monótono. Não ligar computador, que está conectado à rede e pode haver raios. Havendo raios, perde-se o modem, é capaz. Faz-se calma a rua, lá em baixo. Ninguém nas calçadas, poucos carros transitam lentos; faróis acesos, embora seja dia.

O garoto de cinco anos delicia-se com o que vê – a rua virou um rio, diz ele, sugerindo um poema moderno, três versos apenas, mas não é haikai, que não tem a métrica:

                   Rio
                   porque a rua
                   virou rio.

         Bem podia ser haikai, sim:

                    Foi-se a rua.
                    Sob célere torrente
                    virou rio.

A noite já vem, e com ela o telejornal ao pôr do sol, pois que há horário de verão. O modesto rio da torrente aqui em frente apenas sugere o lamaçal que obstruiu avenidas, fez escuro, apagou sinais de luz dos cruzamentos, enfureceu córregos e transformou vidas. Há entrevistas de bombeiros militares, esses que chamamos defesa civil. Famílias em desabrigo, funcionários barnabés a buscar guarida para tantos. Existem casas desocupadas, a prefeitura as oferece – mas eis que foram invadidas por sem-tetos desde ontem, diz o locutor. Um pai chora ante a câmara, e a casa acaba de cair: só resta a parede de fachada.

Agora, fala o coronel-bombeiro-militar-defesa-civil. Sua entrevista também é interrompida, a água furiosa arranca mais barranco. No peito da gente, dói uma dor feito verruma: sensação de impotência, vontade de fazer alguma coisa, ajudar, sei lá!

O locutor volta à tela e conta: outra margem de córrego também acumula desabrigados e, entre estes, gente que nas enchentes do ano passado ganharam casas, casas próximas às casas que os sem-tetos invadiram ontem. E não estão lá porque, assim que as chuvas passaram, venderam suas casas e voltaram para a margem do córrego.

Texto do Acadêmico Luiz de Aquino publicado originalmente em:

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