Uma das vantagens da
advocacia criminal foi conhecer a fundo a alma de criminosos que o
sistema considerava perdidos. Eram pessoas que matavam, estupravam,
traficavam drogas, torturaram com requinte de crueldade. Na maioria
das vezes, essas pessoas eram paupérrimas, não possuíam dinheiro
para um advogado.
Então o escrivão do
crime batia lá na porta do meu escritório, sorriso amarelo, trazia
um pedido de socorro do juiz e geralmente já vinha com um processo
ensebado debaixo do braço. O juiz escrevia à mão num bilhete que
aquele era um caso complicado e que os advogados da comarca de
esquivavam da defesa. Eu era seu curinga. Ele só recorria a mim em
casos extremos, quando ninguém mais queria pegar a causa. Ladrão de
galinha era encaminhado aos novatos. Eu não tinha a obrigação de
pegar o caso, mas nunca recusei nenhum. Era a minha contribuição à
justiça brasileira.
Uma tarde, lembro-me que
era uma segunda-feira de muito serviço, com problemas a serem
resolvidos no escritório. De repente lá aparece o tal escrivão e,
como sempre, armado com o sorriso, o bilhete e o processo. E o caso
que me levou era de fato pesado. Um homem até então pacato e
tranquilo havia atacado uma garotinha de dez anos, violentou-a e a
jogou morta dentro duma cisterna. Foi uma repercussão muito negativa
na cidade e por isso que ninguém queria defender o monstro.
Li o bilhete, peguei os
autos do processo e assinei o livro de carga. Deixei-o ali sobre a
mesa, pois muitos eram os afazeres que me dariam retorno financeiro.
A justiça gratuita teria que esperar. Mas eu o levei para casa e li
suas folhas terríveis até tarde da noite. Seu nome era José,
carpinteiro como o da Bíblia, solteiro, morava sozinho numa cabana
perto da mata. Por lá passava todos os dias a menina Patrícia, pois
aquele era seu caminho para a escola. O acusado e a vítima se
conheciam, se cumprimentavam diariamente, nunca tiveram qualquer
desentendimento.
Numa manhã, quando
Patrícia passava sozinha pela porta da casa de José, ele
misteriosamente decidiu atacá-la. Seu corpo foi encontrado na
cisterna da casa dele, já em adiantado estado de decomposição.
Como defender um homem desses? Que argumentos usar diante dos jurados
do Tribunal de Júri? Por conta de todas essas dúvidas, resolvi que
precisava conhecê-lo. No presídio, encontrei José vestido com o
uniforme que o Estado lhe forneceu, muito magro e abatido. Era um
homem baixo e magro, aproximadamente 1,60 cm, pele morena, careca,
tinha uns cinquenta anos de idade. Falava com uma vozinha mansa, e
seus olhos eram de pupilas pequenas e negras.
Conversamos por umas
duas horas e ele me confessou que um impulso incontrolável o levara
a atacar a criança. Disse que um animal tomara conta de seu ser, uma
força maior que sua capacidade de autocontrole e os crimes se
consumaram. Manifestou remorso e pediu que uma junta médica o
analisasse, pois sua conduta não era normal.
Saí dali profundamente
arrependido de pegar o caso. Minha vontade era de saltar sobre aquele
homem e agredi-lo fisicamente. Mas eu não podia fazer isso. Eu era
seu defensor e tinha a obrigação de defender seus interesses. Pedi
aos psiquiatras do tribunal de justiça um exame de insanidade mental
e depois de meses constataram que José era perfeitamente normal e
capaz de responder pelos seus atos.
No dia do julgamento, a
plateia do Tribunal do Júri estava lotada. E todos os jurados eram
pais, o que queria dizer que a condenação era certa. Lá de fora
vinham manifestação de repúdio ao ato do criminoso e até a mim,
que aceitara defender um bandido daquele porte. Ele foi de fato
condenado a 25 anos de detenção em regime fechado, mas cumpriu
pouco mais de quatro anos, um sexto da pena, progrediu para o regime
semiaberto e desapareceu. Nunca mais se teve notícias dele.
Esse caso já tem mais
de dez anos e eu me lembrei dele hoje porque, na faxina do
escritório, encontrei a cópia do processo dentro de umas caixas. O
pacato José, pequeno e fraco, que nunca tivera desentendimentos com
ninguém, voltou à minha mente como se eu o tivesse conhecido hoje e
suas palavras me assombraram: “uma força maior que minha
capacidade de autocontrole”. Será que em cada um de nós, em maior
ou menor proporção, jaz latente uma alma criminosa?
Adriano Curado
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