Medo de chuva
Lembranças de infância costumam trazer cores fortes e odores precisos. Diziam-me os que eram adultos quando eu era pequenino que minhas lembranças não eram exatas (aqueles adultos, em sua maioria ou quase totalidade já se foram para o plano superior), e eu não conseguia, ante esses argumentos, modificá-las; achava eu que minha memória estava precisa – afinal, minha memória não mentiria para mim.
Ainda hoje, sem o testemunho contraditório dos “meus mais velhos”, lembro-me das coisas com as mesmas cores e os mesmos cheiros. E sons. De uma coisa, porém, tomei certeza posterior: os adultos que eu imaginava muito altos não eram mais que pessoas medianas – apenas eu era miúdo. Apenas? Não: meus amigos também eram miúdos, como eu.
Os temporais nacionais desta estação, esta transição da Primavera do Verão, incomoda o Brasil total, amedronta o Sul e o Sudeste, encharca o sertão do Nordeste, escurece o céu do Planalto Central, desliza montanhas aí afora, Brasil adentro; e desaloja pessoas, destrói pontes e casas, corta rodovias, leva pontes, derruba postes e árvores etc. E na continuidade, mata pessoas. O momento das notícias do tempo são mais esperados que as do esporte (entenda-se futebol, que o resto é comentário, apenas).
Esta manhã, sexta-feira, 20, às vésperas do Natal, amanheceu sem chuva em Goiânia. E o silêncio das gotas despertou minha memória para os sons das chuvas noturnas nas telhas de nossa casinha na avenida Coronel Bento de Godoy, em Caldas Novas. E não era apenas o som dos pingos fortes na cerâmica do telhado: era um momento, ainda que impreciso. Uma noite de Primavera, ou de suas vésperas, entre 1952 e 1954.
Aquela chuva me acordou, e era madrugada quase ao fim. O dia clareara e minha mãe, veio nos chamar, as aulas sempre começavam às 7 horas.
As folhas das árvores e dos arbustos enfeitavam-se com as pérolas da primeira chuva. O chão do quintal e das ruas mostrava-se salpicado das gotas, e eu olhava aquelas formas e criava fantasias: eram formações como as de uma figura de livro mostrando crateras na Lua, mas podiam também ser miniaturas de castelos – se as formigas e outros insetos construíssem castelos.
Mas a vida cheirava diferente. A gente dizia ser “cheiro de terra molhada”. Sobre isso, discuti com a professora, dona Vanda Rodrigues da Cunha: não é, não; é só cheiro de chuva. Se fosse cheiro de terra molhada a beira do córrego também tinha esse cheiro”. Ela me olhava em silêncio por cinco ou dez segundos; depois, beliscava-me as bochechas e me abraçava apertado, e eu não gostava, sentia-me asfixiado (década depois, ela me contou que se surpreendia com meus argumentos, sempre diferentes do que ela esperava).
E era, então, aquele cheiro... O cheiro da terra que recebeu água da chuva, mas só de pouca chuva, porque quando chovia demais o cheiro sumia. Prenúncio de frutas maduras nos pés, e nós meninos a reagir naturalmente, sem ensaios nem planos mirabolantes: iríamos povoar quintais e árvores, feito os periquitos em festas.
Tempo bom, aquele! Não tínhamos medo das chuvas, só mesmo alegria com sua chegada. Medo de chuva era coisa de adultos – pais e mães a nos chamar para dentro de casa, fechar janelas e portas, acudir com baldes as goteiras (quase todas as casas tinham goteiras) e ouvir histórias de adultos, contando de rios cheios e pontes cobertas.
Mas de que nos interessavam pontes intransitáveis ou rodadas nas enxurradas? Nosso mundo era o dos quintais e das ruas sem calçamento; os perigos ficavam só para a gente-grande. Problema deles, uai!
Texto de autoria do Acadêmico Luiz de Aquino, publicado originalmente em http://penapoesiaporluizdeaquino.blogspot.com.br