Confesso
que fui apaixonado por Angélica desde criança. Nossos pais eram amigos e
a gente sempre se encontrava nas festas em comum. Ele também
demonstrava gostar de mim. Um dia, já no desabroche do corpo, trocamos
beijos numa quermesse da igreja, só que adolescente não dá sequência nos
fatos. Alguns anos mais tarde começamos a namorar sério.
Tudo
muito bom e agradável não fosse Angélica portadora de um distúrbio
mental qualquer. Na normalidade de seus dias era uma moça risonha e
agradável, que interagia com todos e possuía um ótimo convívio social.
Mas nas crises da doença ela se tornava um ser medonho, perigoso e frio,
e não faltou quem lhe atribuísse possessões demoníacas e coisas do
gênero.
Qualquer
pessoa prudente teria saído desse relacionamento perigoso, mas eu não
podia porque era apaixonado por aquela mulher. Ela se mostrava
deslumbrante aos meus olhos e eu via em seu rosto lindo a imagem duma
imaculada pessoa. Coisas do amor, é óbvio. E foi então que nos casamos.
Nem minha família e nem a dela queriam. Estavam certos, como mais tarde
eu descobriria. A dela porque queria interná-la de vez numa clínica
psiquiátrica e se livrar do fardo. A minha por razão evidente. Então
fizemos nosso enlace sozinhos mesmo, ali na capelinha próximo da casa
onde há um ano já morávamos juntos, e só alguns amigos compareceram.
Vivemos
dois anos de relativa tranquilidade. Descobri como lidar com a súbita
mudança de comportamento dela, e para isso era só acalmá-la e lhe dar o
medicamento. Aliás, se tomasse direito o remédio tudo ficaria bem.
Naquele
dia fatídico que mudaria nossa história, Angélica até que acordou bem.
Contou alguns sonhos engraçados que teve e rimos muito dessas bobagens.
Então fui trabalhar e a deixei medicada em casa. No meio da manhã chegou
alguém esbaforido no meu escritório. Disse que Angélica havia atacado e
matado o funcionário do correio. Corri para lá e confesso que nunca
tinha visto uma cena assim. Ela o atacara com uma tesoura e o sangue
arterial estava por todos os cantos. Só despertou minha curiosidade que
tudo aconteceu dentro de casa, aonde jamais ia o carteiro.
Angélica
desapareceu logo após o crime e a cidade entrou em desespero. A notícia
era que a louca estava solta com uma tesoura na mão e procurava outra
vítima. Mentira. O objeto do crime havia sido apreendido pelo doutor
delegado. Alguns chegaram ao despropósito de me aconselhar a sair da
casa enquanto não a encontrassem. Insensatez. Disparate.
Alta
madrugada, eu sem dormir sentado na sala com um copo de uísque,
temporal medonho lá fora, vejo pela vidraça o vulto de Angélica. Estava
com os joelhos dobrados, mãos apoiadas no chão, cabeça baixa, e a única
peça de roupa que vestia era minha camisa branca. Fui até ela, tomei-a
nos braços, entramos. Banho quente, roupas secas e o acalento. Ah, e o
remédio, claro. Antes de adormecer ela sorriu para mim e balbuciou: "Ele
me atacou."
No
outro dia bem cedo me entreguei ao delegado. Contei que voltei em casa
porque esqueci meu celular e dei com o carteiro na tentativa de
violentar minha esposa. Então peguei uma tesoura e o ataquei sem pensar.
Ela fugiu desesperada e eu voltei para o trabalho calmamente, como se
nada tivesse acontecido, para pensar no que fazer. Então a diarista, que
adiantara a faxina em um dia, viu o corpo e chamou a polícia.
Como
não havia ninguém para me inocentar e encontraram obviamente minhas
digitais na tesoura, fui condenado. Peguei quinze anos de prisão, cumpri
cinco e anteontem saí. Mas anteontem, logo que cheguei em casa, o
instalador da televisão a cabo estava morto na sala. Angélica olhou para
mim e disse: "Ele me atacou."
Agora
estamos num avião rumo ao lugar mais longe que minhas economias
conseguiram comprar. Logo darão por falta do morto mas enquanto isso
podemos nos distanciar cada vez mais. Angélica dorme no meu ombro um
sono perturbado e seu corpo se agita em tremeliques. Não a deixarei por
nada, ainda que me mate numa crise psicótica qualquer. Este amor está
acima do próprio amor.
Acadêmico Adriano Curado
http://www.adrianocurado.com/
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