Durante
uma época de minha vida, eu morava em Anápolis, Goiás, e trabalhava em
Goiânia, de modo que todos os dias, de segunda a sexta-feira, eu ganhava
a estrada. E nessas viagens pude observar que quase sempre encontrava
um andarilho no acostamento, ora num sentido ora noutro. Nossos
"encontros" eram muito rápidos, duravam os segundos que meu carro levava
para se deslocar entre o ponto em que o avistava e o instante de
deixá-lo para trás. Mas ainda assim pude observar que ele era bem jovem,
no início da casa dos vinte anos, e que certamente sofria de algum
transtorno mental. Sentia muita pena daquela pobre alma, tão jovem e sem
nenhuma perspectiva de ter uma vida normal. Também tinha a certeza de
que cedo ou tarde o encontraria morto por atropelamento, estendido na
estrada que era sua casa.
O
andarilho contava com alguma ajuda, pois eu o via com roupas limpas de
vez em quando, embora a maior parte do tempo estivesse maltrapilho o
sujo. É interessante como as pessoas que vivem em trânsito tomam aos
poucos a cor da fuligem do escapamento dos carros. Ficam acinzentadas.
Às vezes não é possível nem identificar o sexo.
A
história desse andarilho teve um desfecho interessante. Comentei certo
dia com um amigo psiquiatra sobre seu caso e meu receio de que uma
tragédia o alcançasse. Então, juntos, resolvemos mudar o enredo. Fizemos
algo meio violento, mas não havia outra forma de proceder. Fomos para a
estrada e o abordamos. Propusemos que nos acompanhasse para tratamento e
ele resistiu, o que nos forçou a intervenção compulsória. Ou seja,
pegamos o pobre na força mesmo e metemos dentro de uma ambulância da
clínica desse meu amigo.
O
caso foi diagnosticado como esquizofrenia crônica. Iniciou-se o
tratamento com medicamentos pesados, boa alimentação, higiene. Dava a
impressão que ele nunca mais melhoraria porque não havia progresso com o
tratamento. Suas únicas palavras eram sobre a estrada e o desejo de
voltar para lá. Cheguei a me indagar se nossa ação era correta ou
criminosa. Quem sabe aquele era seu destino e ele precisava cumpri-lo?
Certo
dia, no entanto, ele acordou diferente. Olhava para o próprio reflexo
no espelho, passava a mão pelo rosto, apertava partes do corpo. Ele
voltou, disse-me o amigo médico. E de fato, quatro meses depois do
"sequestro do bem", aquele andarilho tomava ciência de si próprio por
força da química dos medicamentos. Não se lembrava de nada das andanças e
nem tinha noção alguma aonde andara por tanto tempo. Mas lembrou-se da
mãe e do local onde moravam. Por incrível que isso possa parecer, ele
viera, sabe-se lá como, do sertão da Bahia até Goiás, uma distância de
quase dois mil quilômetros. Então começou outra etapa da ajuda. Já que
comecei, precisava ir até o fim.
Dois
dias na estrada com Paulo, esse o seu nome, calado e pensativo, olhos
fixos na paisagem que passava acelerada, embora o pensamento certamente
estivesse muito distante. Finalmente chegamos a uma região árida próxima
da Chapada Diamantina, terra de gente pobre e castigada pela seca
constante. Quando descemos do carro, vi a mais bela cena de minha vida. A
mãe de Paulo varria a frente da casa, e ao avistar o filho, deixou a
vassoura cair e correu ao seu encontro com o rosto banhado em lágrimas.
Eles se abraçaram e assim ficaram por muito tempo, choro geral,
inclusive meu.
Dona
Ana me contou que o filho era normal, até o dia em que um primo seu lhe
ofereceu um cigarro de maconha. Desse dia em diante ele se tornou outra
pessoa, andava muito, falava sozinho, parou de trabalhar e de tomar
banho, até que desapareceu.
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