Um dia João surtou

João havia entrado naquele círculo perigoso da rotina invariável, do cotidiano sem perspectivas e do desânimo de melhorias na vida. Alguém pode conviver certo tempo com um estado de espírito assim, mas cedo ou tarde surtará.

Até que João resistiu bastante. Funcionário público eficiente, nunca reclamou do baixo salário, do serviço acumulado e das negativas de uma folga numa segunda-feira qualquer. Ainda que outros colegas da repartição conseguissem muito mais benesses e trabalhassem muito menos, ainda assim João nunca reclamou. Ele era daqueles que chegavam sempre quinze minutos adiantados; e esperava com o crachá na mão para bater o ponto e se sentava na escrivaninha de trabalho até a hora do almoço. Saía, almoçava e retornava com a mesma eficiência e adiantamento de antes. Ao final do expediente, sempre se deixava ficar um pouco mais, afinal, tanto serviço que os outros lhe empurravam requeriam horas de dedicação, ainda que nada recebesse por isso.

A coisa continuou nesse patamar por cinco longos anos. Sem família ou amigos, João não se importava com uma situação dessas porque não tinha muito o que fazer da vida. E tome carga nas costas do burrinho. 

— Preciso chegar um pouco mais tarde amanhã — disse ao chefe imediato.
— E por qual razão?
— Tenho uma consulta no médico.
— Está doente?
— Graças a Deus, não. É uma consulta de rotina.
— Então consulte no sábado.
— Não dá. O médico só atente de segunda a sexta, até as 18 horas.
— Arrume outro médico.
— É que eu pensei que por trabalhar tanto e ficar até mais tarde...
— Pensou errado. Agora preciso trabalhar.

Essa conversa deixou o pobre João muito sentido. Durante tantos anos ele levou aquela repartição nas costas e agora isso. No dia seguinte, no entanto, não foi trabalhar porque decidiu pela consulta médica. Quando finalmente retornou, encontrou o chefe furioso. Ouviu em silêncio uma porção de desaforos e retornou para sua mesa com uma carta de advertência na mão. A primeira em cinco anos. Ficou ali sentado por longos minutos, olhos fixados naquele papel disciplinar, cabeça baixa. Os colegas de repartição riam dele e zombavam das palavras que o chefe gritou para que todos ouvissem.

Por fim, João se levantou, pegou o paletó e foi embora. Não bateu o ponto de saída e nem esperou o final do expediente. Pela primeira vez em cinco anos, foi embora e deixou serviço por fazer. 

Em casa, redigiu duas cartas. O pedido de demissão enviou pelo correio ao chefe. O dossiê com todas as falcatruas da repartição pública enviou anonimamente aos jornais, e ali contou dos funcionários fantasmas, nas obras superfaturadas, do uso dos veículos oficiais fora do trabalho etc. 

Foi uma bomba no governo. O chefe imediato de João saiu preso de casa à seis da manhã, quando a polícia saltou o muro e o algemou ainda de pijamas. Os funcionários fantasmas foram cassados, demitidos e processados. Os demais tiveram que trabalhar dobrados para dar conta do serviço sem a ajuda de João.

E por falar de João, o que foi feito dele? Dizem que surtou. Soube que ele passou em todas as lojas de venda de animais, comprou os pássaros que estavam à venda e os levou para o mato onde foram soltos. Depois disso desapareceu e não tivemos mais notícias dele. 

Eu conheci João, um homem bom, calmo e resignado. E se menciono aqui a sua história, e para alertar que todas as represas, quando represam água demais, um dia estouram.

Adriano Curado

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