A testemunha da morte

Naquele dia 18 de setembro de 2004, na santa casa, foi a primeira vez que presenciei a morte de alguém. João era um grande amigo meu. Estudamos juntos desde as primeiras letras e concluímos o curso de Direito no mesmo ano. Eu soube de sua primeira namorada e fui testemunha de seu casamento. Enfim, quase um irmão.

Certo dia, ao fazer exames de rotina, descobriu que estava com câncer no pâncreas. Fez vários tratamentos, aplicações químicas e outras intervenções dolorosas, mas a metástase foi inevitável. Em menos de seis meses os tumores já haviam se generalizado por todo seu corpo. Por fim, veio o diagnóstico de uma semana de vida.


Por essas alturas já estava divorciado e não tinha mais os pais. Foi então que o telefone lá de casa tocou e uma enfermeira da santa casa me disse o inevitável: o paciente quer que o senhor fique com ele nos seus últimos instantes. Em momentos assim na vida a gente é colocado à prova. Pensei várias vezes nas desculpas que poderia sacar, nos contratempos que me afastariam daquela espinhosa missão. Mas não encontrei solução, fui cumprir a incumbência de interpretar o pior papel da minha vida: a testemunha da morte.

Cheguei à santa casa ainda cedo e nos corredores se sentia o cheiro de café fresco. Empurrei a porta do quarto e lá estava ele: magro, rosto fundo e abatido, mãos espetadas por muitos tubos. Mas ao me ver uma luz se acendeu em seu rosto e ele sorriu esplendoroso:

Você veio!
Claro que sim ― respondi com medo de ser traído pela emoção.
― Sente-se ali. Vamos relembrar algumas coisas.

Passamos aquela manhã ocupados com reviver as histórias passadas, do tempo em que brincávamos de carrinho de rolimã nas ruas de terra e também roubávamos frutas no quintal da dona Angélica d’Ávila. João ria a não poder mais. Às vezes perdia o fôlego, tossia, ficava meio roxo, mas depois se recuperava e voltava à gargalhada.

São realmente os melhores tempos esses da nossa infância. E passa tão rápida que mal percebemos quando amadurecemos e somos lançados à responsabilidade da vida.

Esgotado nosso repertório de recordações, João segurou firme na minha mão e disse:

A vida é um fiapo de luz.

Logo depois a cabeça dele pendeu para o lado e os aparelhos passaram a emitir barulho contínuo. Não havia mais vida naquele corpo. Não senti vontade de chorar ou esbocei qualquer forma de emoção. Levantei-me calmamente e fui chamar a enfermeira de plantão. Era isso que ele desejava, que eu fosse forte.

Hoje é o aniversário de dez anos da morte de João e eu fui ao seu túmulo depositar algumas flores e dizer orações. Creio que a verdadeira imortalidade está na perpetuação de nossas lembranças na mente de quem amamos.

Então, João é eterno.

Adriano Curado

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