As chuvas intermitentes do mês de julho ousavam cair sobre a terra. Como num festejo continuo pós ressaca das coloridas noites juninas, nos arraias nordestinos. Nesta amálgama temporal – comemorações e inverno – em que se vive anualmente na terra comum dos homens, as crenças dão um tom a esta aquarela. Os foguetes, verdadeiros sinais de comemoração insistem em ascender aos ares, cuja imponência ofusca os olhares mais atentos. O odor da pólvora ao explodir, exalava muito mais que meros ingredientes químicos. E na alvorada que surgia, trazendo consigo a esperança de tempos amenos, o som do pífano fazia-se ouvir nas estreitas vielas. Qual maestro frente a pomposa turba de músicos e instrumentistas, o mestre da banda com a flauta entre os lábios, comandava os demais. O cortejo insistia em seguir diante das casas, levando o ícone numa “esmolação” religiosa. Aos estranhos àqueles costumes, indiferentes as suas estórias e crendices, passariam de largo sem atentar a beleza implícita daquele momento. A figura do homem que no imaginário popular, encontrou guarida para tornar-se milagreiro, beato e santo -Padre Cícero Romão Batista, recebia as homenagens de seus fiéis.
Sua vida e obras, nas longínquas regiões e desérticas terras do cariri cearense, ultrapassaram os limites geográficos. O velho sacerdote católico, arrastava para si incontáveis números de seguidores, no afã de receber seus conselhos e rezas. O confessionário da secular matriz, sob o orago de Nossa Senhora das Dores na interiorana cidade de Juazeiro do Norte, era o destino de peregrinos e devotos que rumavam em busca do padim Ciço. As estradas empoeiradas do nordeste, enfeitadas com os cactos, mandacarus, e sob um sol inclemente testemunhavam amiúde a coragem de um povo, que não obstante as intempéries impostas pela vida, rumavam à “cidade santa” pendurados nos paus-de-arara. Embalados pelas preces sem ritmos, que pareciam um coro divorciado da afinação, os “benditos” ouviam-se a léguas de distancias, numa entonação descomunal, transubstanciada num visível sinal de devoção.
Aos poucos as roupas enegrecidas dos fiéis, vão tomando lugar nas ruas, casas e igrejas. E num observar contemplativo, o sentimento de luto transpassa o lugar, como na cerimônia de exéquias a lembrança e pesar sobressaem. De pés no chão, desprovidos de sandálias e alpargatas, sentindo a dor ao pisar na terra árida e pedregosa, os devotos pagam suas promessas, em agradecimento as intercessões do santo nordestino. Mesmo não recebendo as honras dos altares, o padre Cícero é aclamado pela fé popular. As curas, milagres e bênçãos a ele atribuídas, aumentam a fama de santidade do homem nascido entre o velame e a macambira, num sertão permeado pela ausência de água, rigidez da terra e pobreza extrema.
Padre Cícero transformou-se em lenitivo, capaz de amenizar o sofrimento de um povo castigado pela fome, mas cuja intrépida fé os mantém esperançosos. Vinte de julho. Para uns, dia normal no calendário gregoriano, mas para outros a certeza que suas dores, aflições e dissabores são retemperados pela intercessão diária daquele, cujos nordestinos num ato genuflexo ousam rogar: “- A bênção meu padrinho Cícero”.
Texto do escritor Olegário Venceslau, membro da Academia Maceioense de Letras, membro da Academia Alagoana de Cultura e membro da Academia de Letras e Artes do Nordeste. Membro Correspondente da APLAM.