Tocou o interfone
Tudo começou quando
tocou o interfone aqui de casa e, ao atendê-lo, ouvi que se tratava
de uma senhora com três crianças pequenas à procura de comida. Nos
dias de hoje, com tanta violência noticiada, até pensei em dizer
que não tinha. Mas aí algo me veio à mente: e se de fato for
verdade?
Desci então a escadaria
do primeiro andar e, ao chegar ao portão, qual foi minha surpresa ao
deparar com uma jovem, talvez de uns vinte anos, com três filhos: um
menino de quatro anos, uma menina de dois e um bebê de colo. Em
rápidas explicações, contou-me que viera do nordeste para
Pirenópolis com o marido, um grimpeiro desejoso de trabalhar nas
pedreiras, mas que morrera numa briga de bar assim que chegaram. Sem
dinheiro ou local para morar, estava provisoriamente no coreto da
praça da Matriz, só que já tinha um ultimato da polícia para sair
de lá. Agora sentiam fome e minha casa era a solução para seus
problemas imediatos.
Olhei para aquela família
desestruturada, exposta a todo tipo de risco, enquanto decidia o que
fazer. Os filhos mais velhos punham em mim olhos de desespero e
esperança, como se eu fosse o salvador do mundo. O mais novo mamava
sem maiores preocupações. E ela deixava entrever o pavor no
semblante. Cocei a cabeça, já eram três da tarde e a empregada não
estava mais. Ainda assim mandei-os entrar. Abri a geladeira à
procura de soluções. Daí me veio a ideia de agilidade. Então
quebrei ovos e fiz um omelete gigante, recheado com verduras, carne e
outras sobras do almoço. Eles comeram como se aquela fosse a última
refeição de suas vidas. Até achei que iriam passam mal.
Depois que se saciaram,
continuaram com o olhar em mim. Algo do tipo: e agora? Não podiam
retornar à praça, já estavam avisados, e por qualquer motivo maior
o conselho tutelar poderia decidir ficar com as crianças. Também
não podia acolhê-los aqui em casa, gente que eu não conhecia.
Paguei então uma semana de hospedagem numa pensão na rua Direita.
Isso seria suficiente, acreditava eu, para que Maria, esse o seu
nome, pudesse decidir aonde ir com seus filhos.
Correu aquela semana,
depois outra e o mês chegou ao fim. Só então notei que não havia
como resolver o problema de Maria. Pagar-lhe uma passagem de volta ao
nordeste? Ela alegava que não tinha mais parentes lá e que quase
nada sabia da família do ex-marido. Arranjar-lhe uma ocupação em
Pirenópolis, com esse tanto de filhos? Improvável.
Por fim, minha
funcionária pediu as contas para trabalhar numa pousada e eu
empreguei Maria. Como a casa é grande, ficou hospedada num dos
cômodos do fundo, com cozinha independente. Matriculei seus filhos
maiores na escola, incentivei-a a fazer um curso profissionalizante,
ela aprendeu inglês, etiqueta, boas maneiras. E chegou o dia em que
tive que deixá-la ir. Ela já era grande demais para trabalhar aqui
em casa. A tal pousada me levou outra funcionária.
Hoje Maria é a gerente
principal do maior hotel da cidade. Já viajou meio mundo em
especializações e palestras. Soube que ela é requisitadíssima em
eventos, graças à sua agilidade mental.
É verdade que nunca mais
voltou aqui em casa para uma visitinha. Mas eu não a culpo, pois sei
que sua agenda é apertada demais. Seus filhos cresceram, e a mãe
mandou os mais velhos estudarem em cidade maior.
Ainda hoje, quando toca o
interfone aqui de casa, eu penso que é Maria com seus filhos. Mas
ela não precisa mais de mim, eu cumpri os desígnios divinos de
encaminhá-la no rumo do sucesso. Só posso mesmo aplaudir tantas
realizações e torcer para que ela continue sempre em crescimento.
E tudo isso porque eu
decidi atender o interfone!
Adriano Curado