SAFIA DOS PIRENEUS DE GOIÁS
Foto Edson Ges: Safia na Galeria Athos Bulcão (DF)
Foto Edu Gama: O baile, de Safia
por Angélica Torres Lima
SAFIA nasceu Celestina Teixeira Siqueira, a 8 de junho de 1929, no Morro do Pireneus, em Goiás, onde desliza o córrego chamado Gostoso. Habitava a vizinhança da família uma tribo de emas, entre as quais a menina cresceu brincando e correndo pelo cenário deslumbrante da Serra que volteia Pirenópolis.Tinha sete anos, quando os pais camponeses Anjo Teixeira Martins e Leduvina Rosa Venucci decidiram descer o morro com os três filhos pra viver na cidade.
Lá,
Celestina continuaria a dar sinais do futuro que a aguardava. Arteira,
independente e sabedora do que queria de seu caminho, enveredava os
brejos à cata de argila, matéria-prima de suas primeiras criações em
forma de potes, bichos e bonecas. Volta e meia se queixavam ao pai: sua
fia é danada de levada... sua fia fez isto... sa fia fez aquilo....
sua fia... safia... E assim consagrou-se o nome com que passaria a se
distinguir no universo da arte popular brasileira.
No entanto, escola só freqüentou
quando foi trabalhar em casa de família. Casou-se com um boiadeiro,
voltou a morar na roça e o estudo virou matéria encerrada. Mas nem por
falta de lápis, livros e professores sua genialidade de artista
engaiolou-se. Ao contrário, o sobrevôo livre da menina entre as emas
nos Pireneus de Goiás assentou-se em múltiplas expressões. Esculturas e
telas em poética de cândida sensualidade, além de um manancial de
poesias, histórias, canções e anedotas cultuadas oralmente, Safia cria
com desmesurado talento.
Gênio
e origem somados explicam a qualidade que sua obra alcançou. Safia
herdou dos dois lados da família o gosto pela arte, trazendo no
inconsciente o classicismo da estética européia. Bruno Teixeira, seu
avô paterno, era tecelão, filho de portugueses; a avó, Escolasta
Tavares, fazedora de panelas, potes, jarros, candeeiros, ensinou a arte
da panelagem à sua mãe, cujo pai, descendente de italianos, era pintor
de quadros.
Matriarca respeitada e admirada
pelos seis filhos que criou sozinha (dos quais, três são também
artistas populares), e pelos 14 netos e sete bisnetos, Safia não
pratica arte sacra embora sua religiosidade seja visceral, e ao modo
dela. “Não rezo, mas gosto de me sentar na Igreja e ficar lá”.
Segreda que talvez aceitasse se
convidada a pintar um mural, ou o que fosse, na Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Rosário, patrimônio histórico da colonial Pirenópolis.
“Mas”, reconsidera com humor, “gosto mesmo é de pintar moça dançando,
menino pelado... eu ia ofender os santos”.
Foto Edu Gama: Safia e a Matriz de Pirenópolis
Artista
reverenciada por quem quer que conheça seu trabalho, ela, no entanto,
permanece em anonimato, vivendo sozinha numa casa humilde, em
Pirenópolis. Ao completar 80 anos em junho de 2009, lá, um grupo de
admiradores de suas artes prepara-lhe grande celebração. Querem que em
sua terra natal, sobretudo, Safia mereça reconhecimento e assuma o seu
lugar na trindade goiana, ao lado de Cora Coralina e de Antonio
Poteiro.
FORTUNA CRÍTICA
João Evangelista,
especialista em história da arte, ex-diretor dos museus de Arte de
Brasília e de Santa Catarina: “Safia é um gênio da arte. Eu colocaria
sua obra no capitulo do classicismo, mas teria uma certa dificuldade
nisso, porque a arte de Safia é complexa”.
Ziraldo Alves Pinto conceitua Safia como a maior escultora de arte popular do Brasil,
e aponta para o que ele chama de “o gesto culto” na poesia dos seus
personagens de cenas rurais e urbanas, como cavalheiro e dama, casais
em pista de dança, madonas com crianças à volta e no colo, jovens
mulheres em lânguidas posições. “Ela é o máximo, é a maior”, vibra o
multi-Ziraldo.
José Mindlin, ao
visitar uma mostra de arte popular brasileira no MAB, onde estavam
expostas peças de Safia, classificou: “Esta peça é a Vênus De Milo
brasileira” (foto abaixo).
Alguma poesia oral de Safia
NASCI NOS PIRENEUS
Nasci nos Pireneus
junto com meu pai eterno
numa campina tão bonita
no meio de muitas emas
num ranchinho na beira-córrego
rebuçado de sapé,
cobertinha de algodão
tomando chazinho de mé,
num colchãozinho pequeno
num caquinho de buriti,
parecendo ninho de rolinha
ninho de juriti.
Um dia de garoa
já tava pra dar o inverno
eu tava perdida
no meio de muitas emas.
Minha mãe deu um grito
eu respondi.
Ela me encontrou
e me deu um tapa.
Meu pai também xingou.
Eu então respondi:
mas eu não gosto de vocês!
só das ema e do meu avô!
Depois, papai teve idéia de mudar,
nós se mandou.
Eu fiquei apaixonada,
porque as ema ficou.
MALEITA
É terreno do sertão
nem dado não aceita,
a gente compra um sítio
fica alegre e satisfeita.
Espera boa colheita
pode dar bom mantimento.
Mas bem pouco aproveita.
Quando a febre vem
o caboclo deita
chama o curador
e dá a receita,
purgante de tal
purgante de azeita
toma surufato
não pode beber leite,
quando for daí um pouco
o caboclo purga preto
eu falo porque sei
porque passei
por este aperto
Quem sofreu maleita
não tem mais conserto
ainda que cura de um
o peito.
VOZ DE PÁSSARO
Macuã e anúm preto
dizem que cantam assim:
“Minha mulher não presta
- não presta por que?
é com um e com outro
é com um e com outro”
“Finca, finca, eu ranço
pinico, pinico, jogo fora
primo com prima
se casá fazerá má.
Quá, pode casá!
Chica, cê vai, eu fico
cê fica, eu vou.
Fico, ficô”
NT.: Material
de pesquisa e fotos do arquivo pessoal do advogado Eduardo Nogueira da
Gama, colecionador, amigo e divulgador do trabalho de Safia. Texto de
abertura escrito originalmente para documentário do cineasta Armando
Lacerda sobre a artista.